on quarta-feira, 20 de abril de 2011
Deito em minha cama e me acomodo entre o emaranhado de lençóis. Olho para o teto por alguns instantes e penso ter visto tudo em vermelho; pisco os olhos com força e logo noto todas as cores normais novamente. Não seria a primeira vez que esses espasmos de loucura teimavam em me atormentar. Desde que meu mundo caíra; desde que eu fora atirado em uma eterna escuridão abissal, minha mente resolvera deixar de trabalhar para mim. Agora tinha vida própria. E, como se não bastasse, procurava me torturar até excretar todo e qualquer resquício de esperança que pudesse correr em minhas finas e fracas veias. Os ataques eram frenéticos, vívidos e cada vez mais constantes.
Tento adormecer, pois meu corpo mostra-se cansado e injuriado após derrotas e mais derrotas. Porém dormir também é uma batalha. Reviro-me inúmeras vezes em busca do conforto proporcionado pelo mundo dos sonhos e tudo o que consigo são alguns segundos de cochilo. Levanto-me e vou até a cozinha. Bebo um pouco de água gelada, caminho pela sala de estar mal-iluminada e com a mobília desordenada. Acendo o abaju e me sento no sofá. Fito o nada, em busca de respostas. Os ponteiros do relógio regem a orquestra da madrugada. A sinfonia das horas agrava a dor lacinante em meu peito. Penso em tudo o que perdi, na vida que deixei para trás. Arrependo-me, pela milésima vez, de ter largado minha família e fugido com uma mulher qualquer. No momento parecia ser amor, depois era algo como paixão, mas só então pude perceber que não era nada. E esse mesmo "nada" foi a única coisa que me restou.
Sinto que estou fechando os olhos aos poucos. Alterno entre a escuridão de minhas pálpebras e a visão da minha sala de estar iluminada pelo abajur. Escuridão, sala, escuridão, sala, escuridão, rua.
De repente estou na rua, descalço, usando o mesmo pijama que estava usando. Um vento frio faz meus pelos se eriçarem. Fecho os olhos buscando o conforto do meu sofá e a temperatura aconchegante da minha sala de estar, mas ao abrí-los só o que encontro é a mesma rua estranha, escura e cinzenta. Caminho em direção à esquina, onde posso ver que caminho darão as outras ruas que se cruzam com a em que estou. Para meu espanto, ambas as ruas dão para a escuridão total. Não ouso me arriscar adentrando no desconhecido. Estou na esquina, observando a escuridão total do fim das ruas da esquerda e da direita, quando a luz do poste próximo a mim acende. Com um sobressalto, ponho-me em posição de luta. Não sei bem o que estou fazendo, mas não estou disposto a perder minha vida tão facilmente. Meu coração dispara e pratico as técnicas de respiração relaxante ensinadas por meu terapeuta. Consigo me acalmar.
Olho para o fim da rua da direita e constato a presença de alguém. Meu coração volta a bater em uma velocidade brutal. Sinto dor a cada batimento cardíaco. Das sombras surge uma mulher, vestida em uma longa e esvoaçante capa vermelha de seda. "Não, não poder ser", penso. É a mulher que me fez largar a família e fugir de sua antiga vida. Aquela que acabou por me destruir completamente. E então das sombras surgem mais duas imagens: um senhor que reconheço como meu pai, já falecido, e um jovem rapaz. Não demoro muito para perceber que é meu filho mais velho, transformado pelo tempo; já havia dado adeus à infância e eu não estivera presente.
Ouço passos às minhas costas. Viro-me depressa e vejo que quatro figuras projetaram-se da escuridão da outra extremidade da rua. Minha ex-mulher, meu filho mais novo, minha mãe e uma figura estranha que não posso reconhecer, pois aparentemente há um véu escuro a cobrindo por completo. Todos caminham em minha direção. Seus olhares não demonstram amor nem carinho. Querem me deter, me parar. Querem me destruir.
Corro em direção à onde tudo começou, mas só há escuridão e mais escuridão. Meu peito dói cada vez mais e sinto que estou prestes a explodir. "Preciso dos meus remédios!", penso. Quando torno a olhar para os outros me deparo não mais com pessoas, mas sim com leões. Estou cercado por sete leões vorazes, rugindo e aproximando-se com seus olhares insinuadores e clamando por carne. Minha carne. Por um lado a escuridão me engole, por outro os leões me mutilam. Não há saída. Nunca houve uma saída. Nunca haverá.