Os Mortos Também Vivem - Parte I

on terça-feira, 7 de dezembro de 2010
Formara-se um nó tão grande em sua garganta que ele praticamente podia sentir sua pele elevar-se. Rui, esse era seu nome, sempre procurou ser uma pessoa amável e atenciosa com todos, até mesmo com aqueles que não mereciam. Era o tipo de homem que contagiava à todos com sua notável simpatia. Certa vez ele conseguira evitar uma briga que certamente teria um fim trágico, apenas dialogando e sorrindo. Isso o fizera ficar bastante conhecido por todo o pequeno povoado em que morava, que era excessivamente pacato.
Morava em um chalé rodeado por árvores e animais da região, um pouco afastado do centro da cidadezinha. No auge de sua mocidade conhecera Mona, a bela nova professora de Língua Portuguesa da cidade, com quem viria a se casar alguns anos depois. Juntos tiveram quatro filhos: Pedro, Tomás, Mateus e a caçula Helena. Criaram seu filhos alegremente, alimentando a semente do amor que plantaram em toda a família a partir do momento em que se deram conta de que haviam encontrado o verdadeiro amor de suas vidas.
Certa noite, Rui ganhara uma boa recompensa em seu trabalho, deixando seus bolsos mais gordos e seu ego mais inflado. Fazia muito tempo que ele não podia fazer um agrado para sua esposa; era difícil liquidar todas as despesas que tinham com seus quatro filhos. Apesar de viverem em uma cidade pequena e das crianças estudarem em escola pública, ainda havia contas a pagar e a questão de alimentar cinco bocas além dele. Seu salário não era muito alto - Rui trabalhava como gerente de uma grande loja de materiais de construção. Portanto, naquela noite, ao sair do trabalho, Rui decidiu que iria até a cidade vizinha - que era claramente mais desenvolvida que a sua - e compraria um lindo colar para Mona; o mais bonito que pudesse comprar.
Dirigiu com seu carrinho surrado até a cidade vizinha. Ligara seu rádio de pilha para acompanhar a partida de futebol que seu time jogava no momento. A estrada estava congestionada, atrasando um pouco o trajeto. Por isso Rui ligou para casa e avisou que chegaria tarde, dando a desculpa de que teria de trabalhar um pouco mais.
Ao chegar à cidade estacionou seu carro em uma rua pouco movimentada e seguiu à pé até a alameda arborizada que dava acesso as lojinhas que Rui tinha em mente. Fora ali que comprara o primeiro presente que dera à Mona e ainda podia lembra-se como se fosse ontem.
O conjunto de lojas estava aberto, porém a maioria das lojas encontrava-se fechada. Por sorte a joalharia estava aberta, e Rui pode escolher o colar perfeito - era prateado, perolado, fino e continha um pingente em forma de coração, sutil, luzidio e cuidadosamente talhado.
Rui saiu da loja com um largo sorriso estampado no rosto. Mal conseguia se conter de ansiedade para presentear Mona com o colar. Queria vê-la feliz; queria deixar bem claro que ele ainda a amava muito e que esse sentimento perpetuaria por todo o universo.
Enquanto passava pela alameda arborizada que o levaria de volta ao seu carro, Rui ouviu alguns ruídos estranhos. Estava apressado para chegar em casa, porém não antes de verificar o que estava acontecendo. Logo ele ouviu barulhos de soco. Alguém estava sendo violentamente agredido. Rui escondeu-se atrás de uma árvore e tornou a olhar para o local de onde os sons vinham.
Um homem alto, forte e usando um gorro preto estava surrando um outro indivíduo, que encontrava-se ajoelhado e completamente ensanguentado. Não havia mais nenhum vestígio de feição humana em seu rosto - estava totalmente desfigurado. Rui não suportaria dar meia-volta e ir para casa sabendo que poderia ter ajudado. Seu coração não funcionava assim. Ele tinha de ajudar.
- Ei, você aí! - indagou Rui, apontando para o malfeitor.
- Dê o fora - disse o encapuzado friamente.
- Não. Deixe a pessoa em paz - bradou Rui, aproximando-se cautelosamente do malfeitor.
Rui sentiu que precisava agir calmamente e fazer com que o mascarado saísse por vontade própria. O que ele não esperava era que o rapaz, agilmente, desembainhasse um revólver e atirasse friamente e sem piedade bem no meio da testa do indivíduo ajoelhado.
Rui olhou estagnado para a cena. Jamais encontrara alguém tão sem coração como aquele homem. Nunca em sua vida imaginaria que matar fosse um ato fácil e rápido para alguém.
- Sinto pelo que viu - falou o assassino. - Não posso deixá-lo ir. Não posso arriscar tudo depois do que passei - continou a falar, dessa vez de maneira mais sombria, mirando seu olhar para o chão.
E em uma fração de segundo, Rui não estava mais lá. Apagara, sentira o chão sumir e mergulhara em uma escuridão total.

O sol iluminava fortemente o lugar, porém Rui não conseguia sentir o ardor do dia, muito menos seus olhos doíam com a claridade. Era como se estivesse perfeitamente adequado ao ambiente. Só então ele notou que as pessoas passavam por baixo dele. Estava mais alto do que todos, flutuando sobre a pracinha no centro da cidade em que morava. Atônito, Rui começou a sentir que estava descendo suavemente, até tocar os pés no chão.
Não conseguia lembrar de nada. Apenas sabia que estava ali, e aparentemente ganhara a incrível habilidade de flutuar. Talvez estivera apenas sonhando. Um estranho delírio que o fizera pensar que estava flutuando. Enquanto pensava, muitas pessoas vestidas de preto saíam da capelinha da cidade. Mas quem será que morreu? Pensou Rui, dirigindo-se, aturdido, até a entrada da capelinha. O que mais achou estranho foi o fato de várias pessoas cruzarem o olhar com o dele, mas não retribuírem o olhar. Apenas continuavam a fazer o que estavam fazendo. Parecia que estavam fingindo não o ver.
Rui entrou na capelinha. Podia sentir a atmosfera mais densa. Havia poucas pessoas sentadas nos banquinhos de madeira, e logo ele conseguiu distinguir quem eram.
Seus filhos e sua esposa choravam abraçados, consolando-se uns aos outros. E então um baque de pensamentos o atingiu. Ele lembrara do que havia acontecido na noite em que fora até a cidade vizinha comprar um colar para Mona. Mas Rui recusava-se a pensar no que podia ter acontecido.
- Estou aqui! Cheguei! - gritou Rui, prostrando-se em frente a sua família. Tudo o que queria era que eles o enxergassem. Queria que eles vissem que estava bem.
Rui então olhou para o caixão que encontrava-se no fundo da capela. Não queria acreditar. Simplesmente não podia acreditar. Aproximou-se do caixão e viu o que mais temia. Formara-se um nó tão grande em sua garganta que ele praticamente podia sentir sua pele elevar-se. Sem conseguir conter-se, Rui debruçara-se em lágrimas. Não sabia mais o que fazer, para onde ir. Estava morto. Sim, estava definitivamente morto.
Ele permaneceu olhando para seu próprio corpo, tão imaculado e limpo, colocado graciosamente no caixão. Estava coberto de flores e tinha um poster com sua foto e uma linda mensagem da sua família. Nada pior poderia acontecer. Até que, subitamente:
- É estranho, não é? Digo, estar morto.
E Rui não acreditava no que estava vendo.

0 comentários:

Postar um comentário