Despedida

on sábado, 26 de fevereiro de 2011
- Você sabe que muito em breve terei de fazer uma escolha muito importante, não sabe? - Ella perguntou à Norton, que permaneceu com o mesmo olhar preocupado que geralmente nunca saía de seu rosto. Ella sempre se perguntara se algum dia ele pudesse ter sido uma pessoa normal, daquelas que sorri e dá bom dia quando passa caminhando pelas calçadas da vizinhança, ou que conversa com o vizinho sobre os últimos acontecimentos publicados no jornal do dia. Norton, pobre Norton, Ella pensou, enquanto enrolava uma mecha de seus cabelos negros em seu dedo indicador.
- Você não precisa fazer escolha alguma. Eu sei o que é melhor pra você, portanto nem pense em persistir com essas suas ideias insanas - Norton disse rispidamente.
As coisas haviam realmente mudado desde a chegada de Ella ao colégio interno altamente disciplinar em que ela estudava. Ao ser informada por seus pais que iria para um colégio interno em outro país, a única atitude de Ella foi trancar-se em seu quarto, jogar-se na cama, cobrir-se com edredons e chorar incontrolavelmente. Era certo que sua relação com os pais não era boa - para falar a verdade era péssima. Não havia afeto, nem diálogo; o máximo que Ella ouvia deles eram reclamações do tipo Por que você só usa essas roupas pretas e esquisitas? ou Tire essa maquiagem pesada, garota! São só sete da manhã! Seus pais eram tidos como "bem-sucedidos" por todos que os conheciam, e logo Ella era vista como a garota problemática que usava roupas góticas e se envolvia com todo tipo de drogas. A verdade não era bem essa.
Desde os oito anos de idade a vida de Ella passou a ser um verdadeiro tormento. Tudo começou enquanto ela estava brincando com sua casa de bonecas em seu quarto e viu um homem de aparência cadavérica abrir a porta e permanecer com o olhar fixo nela. Essa imagem ainda a atormenta em seus pesadelos; os olhos do homem pareciam estar em putrefação.
Desde então Ella é perseguida por imagens cadavéricas, velhas de pele enrugada e sombras que aparecem e desaparecem num piscar de olhos. Não é uma vida fácil, e o medo passou a ser companheiro constante dela.
O único ser sobrenatural que não fosse completamente estranho que Ella havia conhecido era Norton. Na realidade ele já havia deixado de ser um simples fantasma com ar fatigado para ser o melhor amigo que Ella já tivera em toda a sua vida. O internato não estava sendo a "época mais triste de sua vida", como ela havia pensado antes. Tudo graças à Norton, que passava horas e horas conversando com ela. Depois que tornaram-se amigos, Ella raramente via sombras ou coisas do tipo. Norton era a luz que a impedia de ficar completamente insana.
Porém nos últimos dias Norton vinha agindo de maneira estranha, e logo não conseguiu suportar manter segredo sobre algo tão importante: ele estava próximo de fazer a travessia para o Além. Isso significava que ele e Ella não mais poderiam ter seus momentos de amizade verdadeira. Pelo menos não até que Ella também morresse - e isso fora o primeiro pensamento dela. Após horas e horas de discussão, ambos encontravam-se sentados nos degraus da escada que dava para o corredor do quarto de Ella. Observando o céu através das grades vitorianas belamente decoradas que prendiam todas as alunas na escola, Ella estendeu sua mão e acenou com a cabeça, pedindo para que Norton fizesse aquilo. Ele então concentrou-se com o máximo de atenção e conseguiu tocar na mão de Ella. Ambos adoravam quando conseguiam isso: Norton, porque podia sentir-se menos fantasma e mais humano; Ella, porque podia sentir-se mais próxima de Norton.
- Você sabe que eu amo você, não sabe? - Norton perguntou, acariciando o rosto de Ella.
- Não mais do que eu amo você - Ella respondeu, sentindo o rubor espalhar-se por suas bochechas.
- Escute, cada minuto que passa sinto que estou mais próximo de fazer a travessia. Você só precisa ser forte e ter a certeza de que iremos nos rever em um futuro próximo, entendido? - disse Norton.
Após alguns segundos de silêncio e mais alguns carinhos trocados, Ella disse:
- Não se preocupe, não vou cometer suicídio. Embora minha vida volte a se tornar tão chata que eu, com certeza, ficarei tentada a fazê-lo.
Ambos sorriem e, pegando Ella de surpresa, Norton aproxima-se dela e a beija nos lábios. Ou pelo menos tenta. O efeito que permitia o contato físico entre eles pelo visto chegara ao fim, e Norton por pouco não atravessa a cabeça de Ella.
- Bem, parece é chegada a hora - Norton disse. Ella enxuga algumas lágrimas e sorri para Norton. Não é preciso dizer mais nada, porque toda a alegria que ela conseguiu sentir junto a ele estará para sempre armazenada em seu coração. De repente uma luz incrivelmente intensa adentra a escadaria onde eles estão. Ella pensa que é apenas o sol, porém logo se dá conta de que apenas Norton está sendo iluminado.
Norton sorri para ela, manda um beijo e brilha intensamente, fundindo-se com a luz misteriosa e sumindo. Indo para o Além, deixando Ella com saudades, sim, porém com a certeza de que a vida é muito mais do que as sombras que estavam constantemente a assombrando; a certeza de que a vida é luz.

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